domingo, 12 de março de 2017

COMER A HISTÓRIA

Roland Barthes (1915/1980)


"Michelet caminheiro: (...) essa viagem conhece dois momentos em que todo o corpo do homem se envolve: ou o mal-estar da marcha, ou a euforia do panorama. (...) esta dupla captura é toda a História de Michelet. Evidentemente, os momentos mais numerosos são o incómodo, a fadiga duma marcha cega, toda pegajosa duma substância histórica ingrata, de causas miúdas e incolores, e, para dizer tudo, próxima do historiador-viajante. É o que Michelet chama: "remar" (Remo em Luís XI. Remo em Luís XIV. Nado penosamente. Remo vigorosamente em Richelieu e na Fronda). Ora o mergulho implica uma assimilação incompleta da História, uma nutrição falhada, como se o corpo, afundado num elemento em que não consegue respirar, se encontrasse obstruído pela proximidade mesma do espaço."

"Michelet" (Roland Barthes)

Esta forma de "conceber" a História, de a "comer", de com ela alimentar o corpo doente, sujeito a oscilações de ritmo e de humor que se convertem na matéria narrada, patinhando no assunto com as botas do Grande Exército em retirada, ou sobrevoando a cena como a águia da Campanha de Itália, é uma operação mediúnica que transforma a prolixidade dos factos em vozes que falam através do corpo do historiador.

A "euforia do quadro" de que fala Barthes não é, evidentemente, a da verdade (como os factos realmente ocorreram - mas de que ponto de vista?), é antes a do sentido que permite filiar esse quadro no tempo. As suas personagens param aí um momento nas suas diversas atitudes, antes de mergulharem no torvelinho da acção, mas onde, graças àquela pausa, é possível identificá-las e seguir o seu percurso como ao peixe em que se implantou um pequeno transmissor.

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