Terreiro do Paço |
Kissinger e Mao Zedong |
"Se a União Soviética lançasse as suas bombas e matasse todos os que têm mais de 30 anos e são chineses, isso resolver-nos-ia o problema [da complexidade dos muitos dialectos da China]. Porque as pessoas de idade como eu não conseguem aprender chinês [mandarim]."
(Mao Tse Tung, em conversa com Henry Kissinger, in "On China")
A nação mais populosa do mundo 'podia' permitir-se uma sangria como essa. Mao bravejava, sempre que podia, com esse 'trunfo' na eventualidade de uma guerra nuclear. " Na mesma obra do secretário de estado de Nixon, pode ler-se esta outra citação de Mao:
"Mesmo que as bombas atómicas dos EUA fossem tão potentes que, quando lançadas sobre a China, fizessem um buraco que atravessasse a Terra, ou até a fizesse explodir, isso praticamente não teria significado para o Universo como um todo, embora talvez fosse um acontecimento importante para o sistema solar (...) Se os Estados Unidos com os seus aviões mais a bomba A lançassem uma guerra agressiva contra a China, então a China com o seu painço e espingardas teria a certeza de sair vencedora. Os povos de todo o mundo apoiar-nos-ão." ("The chinese people cannot be cowed by the Atom Bomb")
É um erro ver nestas declarações uma simples bravata do número um. De facto, o presidente da RPC, serve-se da ideologia comunista para actualizar uma antiquíssima tradição dos imperadores da China. No pressuposto de que o seu imenso país é "Tudo o que existe debaixo dos Céus" e que todas as restantes nações da terra têm um estatuto inferior, de súbditos ou protegidos do império, a temeridade do secretário-geral, principalmente numa situação de fraqueza relativa perante as duas superpotências e algumas nações europeias, era a 'linha correcta'. A de nunca admitir que a China estivesse ameaçada ou numa posição de 'suplicante'. Os chineses é que eram os 'deuses' e só eles poderiam acolher e proteger as 'súplicas' dos outros povos.
Talvez este fosse apenas o sentimento da corte e do mandarinato, porque não se quadra com a atitude humilde e circunspecta que a imagem tradicional do povo chinês nos apresenta.
De resto, é essa 'sabedoria' que explica a continuidade da China, apesar dos contínuos massacres que a política dos seus líderes tem provocado até aos nossos dias.
Captura de Joana d'Arc, Adolphe-Alexandre Dillens |
"A mediocridade vingou-se bem; ela foi queimada, ela que era o Espírito e a Vontade, pela burocracia desse tempo. Meu Deus, é talvez a mais bela história humana (...)"
Publius Aelius Hadrianus, Imperador de 117 d.C. a 138 d.C.
O deus Termo era o deus que protegia os limites na Antiga Roma e era representado por um grande marco de pedra. Segundo Gibbons, uma lenda dizia que nem Júpiter pôde vencê-lo. Essa glória estava destinada a Adriano, o sucessor de Trajano, o qual tinha ampliado o império para além do que Augusto tinha considerado administrável.
A primeira medida do reinado de Adriano "foi a renúncia a todas as conquistas realizadas no Oriente por Trajano" (Gibbons), devolvendo a liberdade aos povos submetidos e reconduzindo Roma aos seus antigos limites.
Esta auto-limitação do poder é coisa rara na História, porque a força vai até onde pode ir se não encontra resistência.
A cultura grega e o prestígio de Augusto inspiraram este acto de realismo político verdadeiramente clarividente.
Muitos dos nossos males presentes recorrem de não existir nos poderosos qualquer inibição (mesmo que supersticiosa) em relação aos limites das suas acções.
Louis-Ferdinand Céline
O que é que podemos aprender sobre nós mesmos, lendo até ao fim a desesperada "Viagem" de Céline, em páginas como as que descrevem essa espécie de testamento de Robinson, antes de receber os dois balázios no estômago, disparados pela sua amante dentro do táxi e a consagração da sua renúncia à vida por parte de Bardamu?
Desgostado de tudo, mesmo dos prazeres, que ficaram reduzidos à manducação e a dormir o mais possível, com a morte sempre ao lado, mas sem nada para revelar, sem nenhum mistério, o narrador da "Viagem" encontra a perfeição do niilismo nas vociferações de Robinson contra o amor, o físico e o sentimental.
"Tu insistes, tu, em fazer amor no meio de tudo o que se passa?... De tudo o que se vê?... Ou será porque não vês nada?... Mas creio que estás-te é nas tintas!... Fazes-te de sentimental, quando és bruta como as que o são... Queres comer a carne podre? Com o teu molho de ternura?... Tu consegues?... Eu não!..." ("Voyage ao bout de la nuit")
A força deste texto vem-lhe, certamente, dum grande estilo, mas também de ser uma experiência vivida.
Mas creio que não é apenas a recusa das ilusões piedosas que explica esta incapacidade de viver.
A excepção que Bardamu concede, entre as coisas que conservam ainda algum valor, aos pequenos desgostos (como o de não ter visitado um tio enquanto ele vivia ainda) trai neste poeta exterminador um "absurdo desejo de sofrer".
Ora isso não é tão pouco comum assim.
christiinternational.com |
"A pátria não é o sítio em que nos coloca o acaso do nascimento, à mão direita ou à mão esquerda de um guarda da alfândega, mas sim o conjunto humano a que nos liga solidariamente a convicção de um pensamento e de um destino comum. Já um sábio o disse: 'Ubi veritas ibi patria'. A pátria não é o solo, é a ideia. Para que haja uma pátria portuguesa é preciso que exista uma ideia portuguesa, vínculo da coesão intelectual e da coesão moral que constitui a nacionalidade de um povo.
Sabem dizer-nos se viram para aí esta ideia?…
Nós temo-la procurado de aventura em aventura, de jornada em jornada, numa peregrinação de vinte anos através desta sociedade, como Ulisses, vagabundo através da Odisseia, em busca, do fumozinho ténue e amigo que adeje no horizonte por cima da primeira cabana d'Ítaca."
"As Farpas" (Ramalho Ortigão e Eça de Queirós)
Para a geração dos "Vencidos da Vida", o mal do país era profundo. Eça ainda se resgatou, descrevendo-nos a irrelevancia e a futilidade do 202 dos Campos Elísios, quando comparado com as serras de Baião. Mas isso foi muito mais tarde, depois de apalpar muitas vezes a 'caveira', como o seu póstumo Jacinto.
É que não tínhamos sequer direito a um destino comum, a uma ideia moral que nos ligasse! A situação pedia um cataclismo, mas pequeno, à medida a que esses patuscos nos fizeram.
Foram decerto exageros da juventude (Eça tinha 26 anos quando surgiram as 'Farpas' e Ramalho, 35), mas na linha 'tradicional' do auto-apoucamento.
João Miguel Tavares, no 'Público' refere-se à "dificuldade que o país tem em heroicizar os seus heróis e trabalhar a memória dos grandes acontecimentos, como se fôssemos um buraco de meio milénio que inexiste desde o tempo dos Descobrimentos (...)
JMT diz que essa atitude "tem como consequência a desvalorização de feitos tão prodigiosos quanto aquele que São José Almeida recuperou num excelente trabalho na revista do 'Público': a integração dos retornados após o processo de descolonização, em números que ninguém parece conseguir realmente calcular (andarão entre o meio milhão e um milhão de pessoas), um movimento populacional sem paralelo na Europa do pós-guerra, tendo em conta a dimensão de Portugal."
Deve ser, realmente, por não termos nenhuma ideia da pátria e do povo que somos que banalizámos o Panteão. Para recuperarmos a ideia da pátria e do povo português talvez nos falte ainda alguma distância crítica em relação à história contemporânea.
Entretanto, virar as farpas contra nós mesmos é um desporto nacional, conhecido e estimado para lá de todas as proporções.
Bóreas |
"Porque a máquina burocrática, nem por ser formada de carne, e de carne bem alimentada, deixa de ser tão irresponsável e tão inconsciente como as máquinas de ferro e aço."
(Simone Weil)
Talvez que o conceito de subsistema esteja mais actualizado do que o de máquina para descrever a burocracia. Não importa, é um facto que nem por ter leis e uma cultura próprias, a burocracia pensa, e por isso não pode ser consciente, nem responsável.
Descartes dizia que um relógio avariado não obedece às leis do mecanismo que conhecemos para medir o tempo. É outra coisa, até ser posto a funcionar. Isto, não para dizer que existe uma burocracia que funciona e outra 'avariada' ou perversa que parasitaria o sistema, mas que, sendo útil na maior parte dos casos, tem sempre um custo e que, para lá dum certo ponto, tende para a 'autonomia', caso em que os custos superam a utilidade.
O mandarinato da China imperial foi substituído por uma burocracia 'moderna', e no tempo de Mao, era ele o imperador. Ele próprio confessou que esse vício do passado era muito difícil de erradicar, e 'arrependeu-se', pelo menos em palavras, do 'culto da personalidade' praticado pelo partido sob as suas ordens. Esta burocracia, porém, há-de ser cada vez mais um obstáculo (obstáculo 'irresponsável') ao desenvolvimento do capitalismo chinês.
No outro pólo, o da democracia americana, aquilo que Eisenhower apelidou de 'complexo militar-industrial' encerra igualmente dentro de si um elemento anárquico, um estado dentro do estado que ataca a democracia nos seus alicerces.
O "Nine Eleven" é a esfinge da sociedade americana. Quando alguém a levar a precipitar-se, como fez Édipo, soprará do odre dos ventos uma tempestade nunca vista.
"O que é lógico não pode ser apenas possível. A Lógica trata de cada possibilidade e todas as possibilidades são os seus factos."
Mausoléu de Mao Tsé Tung |
"Um livro recente do académico chinês e conselheiro do Governo Hu Angang argumenta que a revolução Cultural, ao mesmo tempo que foi um fracasso, preparou o terreno para as reformas de Deng do fim da década de 1970 e da década de 1980. Hu propõe agora que se use a Revolução Cultural como um caso de estudo sobre os modos como os 'sistemas de tomada de decisões no sistema político existente na China podem tornar-se mais democráticos, científicos e institucionalizados.'
Henry Kissinger (On China)
Se Hitler tivesse um mausoléu junto às portas de Brandenburgo, o seu regime podia ter sido considerado um fracasso (afinal perdeu a guerra), porque o actual estado de coisas seria o resultado de políticas no extremo oposto das suas, e seria notória a falta de uma solução de continuidade.
Hu Angang traz agora uma justificação das políticas criminosas do Grande Timoneiro que, embora 'puxada pelos cabelos', deveria igualmente servir para a estabilidade do monumento funerário de Berlim.
Não é verdade que o ex-cabo austríaco 'resolveu' num tempo recorde o problema do desemprego na Alemanha e o do descrédito da democracia de Weimar? E o massacre da Segunda Guerra Mundial não permitiu, com a ajuda dos capitais americanos, o renascimento económico europeu, em novas bases? A guerra arrasou as cidades e a economia, mas, ao mesmo tempo, reduziu a complexidade histórica das sociedades, e com essa 'terraplanagem' eliminou os entraves culturais ao desenvolvimento do capitalismo que hoje conhecemos.
Também o nazismo podia ser um 'caso de estudo', no sentido positivo, se conseguíssemos pôr completamente a ética de lado.
É claro que a China, nesse aspecto, tomou a dianteira. Para isso muito contribui a presença massiva do mausoléu de Mao, na principal praça da capital. Conviver com tal monumento pressupõe, evidentemente, uma censura da história e, também, uma grande flexibilidade conceptual.
Porque ninguém julga o Führer pelo seu mais do que certo lado positivo. Mao Tsé Tung foi o pai da Revolução Chinesa. E a um pai perdoa-se tudo.
No dia em que não se perdoar, o regime acabou.
"O Terceiro Homem" |
Manuscrito de Musill |
"- Numa passagem do seu 'Wilhelm Meister', o grande Goethe expõe, não sem paixão, um preceito de vida justo que diz: 'Pensar para agir; agir para pensar!'
"The crowd" (King Vidor) |
"O conceito do livro ("Crowds and Power") creio, que é tão real quanto podia ser. Começo por aquilo a que chamo o medo de ser tocado. Penso que o ser humano individual se sente ameaçado pelos outros e sente por esta razão uma anxiedade em ser tocado por algo de desconhecido, e que procura proteger-se por todos os meios de ser tocado pelo desconhecido, criando distâncias à sua volta e esforçando-se por evitar um contacto mais próximo dos outros seres humanos. Todos os seres humanos já experimentaram isto de tentarmos todos não dar encontrões aos outros, nem gostarmos de suportar os encontrões dos outros. Apesar de todas as medidas preventivas, os seres humanos nunca perdem completamente o medo de serem tocados. O que é notável é que este medo desaparece completamente numa multidão. É realmente um paradoxo importante."